Toda moça tem um vestido branco, mas no dia em que sujá-lo...

– Tááá, pai! Como não pode mais limpar? Se a Dona Zelinda, nossa empregada, suja o avental dela todos os dias?!


Eu entendia que sujava, mas... tinha um jeito, tinha de ter!


Comecei a sentir que me batia um horror a tudo o que se insinuasse com o peso das coisas definitivas.


Aquele vestido branco com uma mancha, sim, é verdade – ele me acompanha pela vida toda. Mas dá-se um jeito também (como Dona Zelinda), é o que penso, o que sinto. Quando eu saía no pátio pra brincar, voltava cheia de terra até nos cachos – e o avental branco? Ia direto para o tanque.

Quem já não sujou um vestido branco? Diga?


Em Paris, eu tive grandes confrontos com o estigma daquele vestido, cuja cor parece atrair mais manchas que quaisquer outras cores.


Me via desafiada a escolher caminhos inéditos porque até então estivera protegida pelas convenções da redoma em que tinha vivido.


Com o Zeka era maravilhoso! Ele só não me deixava falar do amor que eu tinha perdido no Brasil. O irmão da minha grande amiga era convidado e amigo do grand monde. Comecei a ir às festas com ele. Das mais variadas, mas só tops das tops.


Um dia, uma exposição; outro dia, comparecer a um jantar com o dono
e último descendente da Vuitton (na época). Acho que o homem tinha uns cem anos – parecia que estava empalhado. Assim eu ia fazendo as minhas amizades.


Com a prática do francês, aos poucos saí da letargia daquela pronúncia contínua. Acho que acostumei o ouvido, e comecei a falar normalmente, aprendendo os segredos do novo idioma.


O Zeka ia todos os dias à igreja, às vezes eu ia com ele. Depois parávamos na esquina de casa e tomávamos um copo de demi-pression. Mas o melhor de tudo era entrar em casa com aquele ambiente art nouveaux, com aquela vitrola sempre tocando as melhores músicas francesas.

Com a Natalie, que não sabia comunicar-se em português, era muito divertido: ela me fazia falar na língua dela e eu ensinava tudo que podia em português, achando graça do modo como ela falava. Um amor de guria, e apaixonada pelo Zeka – aos poucos fomos fazendo uma boa amizade.

A proposta do psiquiatra no Brasil, a de me encontrar, deixei de lado. Naquele momento lutava mesmo era para me encontrar DENTRO de Paris.




Aos poucos também comecei ir às pastisseries, boulangeries: adorava! Encantava-me com as frutas lindas que vinham de outros países: Marrocos, Líbano, Israel, e queijos fantásticos. No entanto, com o que eu me admirava mesmo era com os velhinhos que pediam no balcão deux tranches de jambon, "duas fatias de presunto". Meu Deus, nós no Brasil com aquela fartura e eles tão pobrezinhos!





Na minha inconsciência, eu achava que aquilo era pobreza, quando na verdade era mesmo sabedoria. Ali entendi a arte do "apenas o suficiente", nem pouco, nem demais.




Comecei a compreender realmente os costumes desse povo. Através da alimentação, entrei na essência e na história deles. Claro que não desperdiçavam nada: há poucos anos, a França tinha passado por uma guerra, e Paris quase foi devastada. A comida tinha sido racionada, sem contar que perderam entes queridos que ainda encontravam-se entre as paredes da cidade.



Comecei a caminhar sozinha, achava tudo um milagre brotando de dentro da minha liberdade. Abstraída, ficava feliz por estar ali. Na rua, sentia o sol acariciando-me. Caminhava lentamente pelos séculos. A menininha e o tempo, meus dois companheiros. No corpo, na pele, nos cabelos, a harmonia da natureza.


Sentada nos cafés, costumava ouvir velhinhos sussurrando uma conversa com algum amor do além. Espichava o ouvido e, muitas vezes, chorava a dor daquela pessoa. Resquícios da Segunda Guerra, que estava tão presente neles como em mim. Sempre gostei de velhinhos: eles fazem carinho no meu coração.


A convivência com o Zeka era estimulante. A casa onde morávamos, uma delícia. A Zênia iria voltar ao Brasil dali a um mês. Acostumada a ser servida, não me caía a ficha de ajudar na casa.


Com muita delicadeza, antes de partir, a amiga começou a ensinar-me vários detalhes essenciais para o dia-a-dia do funcionamento do nosso lar. Enfim, os passos básicos para manter a casa limpa e organizada. Gostei. Mas não entendia como é que quando eu terminava de fazer tudo, já tinha de novo um rastro de desarrumação.


A grande surpresa é que a única culpada disso era a própria arrumadeira. Ao mesmo tempo em que a nova e improvisada "limpadora do caos" vivia suas (minhas) primeiras experiências de limpeza, demonstrava a arte em que era exímia: produzir novas manchas naquilo que recém tinha limpado.


A dúvida continuava: quem era eu dentro daquele condicionamento no qual tinha vivido até ali?


Quantas estradas me chamavam... Como é que eu ia saber qual rumo tomar se não caminhasse por todas?


Novamente apareceu, de forma bem nítida, a tabuleta de "Alice não mora mais aqui", e eu fuuuiiiii...




















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