Tu és judia, traidora. Sabias que não és mais virgem? O judeu, quando nasce, tiram um pedaço do pinto se é menino. Se é menina, tiram a virgindade.
-Viste na esquina uma fogueira queimando Judas?
A fumaça produzida por estas labaredas acompanhou a minha infância como uma nuvem negra.
Massacravam-me pela religião que herdei: um Deus implacável e seus representantes mais implacáveis ainda.
A religião é também uma forma de ditadura. Tortura-nos com seus rituais, tira-nos a suprema liberdade de acreditarmos – sem necessariamente seguirmos seus “passos certos”.
Ao contrário do que pretendiam, conseguiram assim fazer com que eu temesse o templo que deveria me acolher.
Mais uma vez, tornei as minhas crenças um verdadeiro caleidoscópio.Desta vez não iriam me perseguir.
Essas coisas a gente não esquece. Elas se acumulam, e se acumulam, muitas vezes, para nos diminuir, não para crescermos.
Mas o que é pior é que exatamente esse processo que nos faz crescer. A duras penas.
Para ser, de alguma forma, neutra frente à pressão das religiões, foi preciso muito desafio superado, muito estudo – para poder escapar ilesa (tanto quanto possível) da força esmagadora que nesses altares arde como uma vela, acesa não para iluminar, mas para queimar toda e qualquer liberdade.
Sempre fui pragmática. (O que, mesmo assim, resultava em ser pouco confortável.) Deixava para trás as mágoas com quem queria me julgar. Só agindo dessa maneira conseguia olhar direto para meu futuro, que já estava – ainda bem – se delineando.
Paralelamente com o que poderia me traumatizar, surgiu nas escadarias do Colégio Americano – quando eu estava no 3º ou 4º ano do primário – um livro que já era um tanto cafona na época, Pollyanna, da norte-americana Eleanor H. Porter (1868-1920), seguido de Pollyanna Moça.
O que lembro desses romances, de fundamental, é que a mocinha protagonista, junto com sua tia Polly, faziam qualquer tristeza virar alegria, no que denominaram o Jogo dos Contentes.
Apesar de serem já então um pouco bregas,os livros gravaram-se profundamente em mim, levando-me a repetir pelas várias estações e fases da minha vida: “tudo beeem”, “Paz e amor...”, “Legal.”
Vivíamos completamente um pós-guerra. Mas o que eu não entendia eram as divergências que havia dentro da minha família, muito porque eram de educações, costumes diferentes.
A parte alemã vinha da Segunda Guerra, a família morava em Bonn, e meu avô era um comerciante abastado. Já a parte russa veio na Primeira Guerra e,eram colonos. O que tinham em comum é que, por serem judeus, tiveram que fugir tanto de um conflito como de outro.
Isto também me dava um nó na cabeça, mas resolvi na própria infância que eu seria do lado alemão, embora do lado russo eu adorasse minha avó Dora.
O que não impedia, que as minhas brincadeiras de boneca, eu sempre estava num trem, fugindo ou dos alemães ou dos russos. A minha boneca, era a minha filhinha, sempre estava sendo protegida por mim.
Quantas coisas do meu autoconhecimento não estavam escondidas detrás dessas raízes.
Esqueci... (Não, não esqueceria nunca!)
Quando chegava o Natal, as luzes estavam presentes nos pinheiros de todas as minhas amiguinhas de escola (e vizinhas). Todos festejavam e eu me sentia como se estivesse num outro país.
Minha mãe, naturalmente, fazia de tudo para que não sentíssemos essa estranheza. Mas era inevitável que minha casa, que era tão aconchegante, parecesse um deserto. Tantos móveis e nenhuma árvore.
Ainda assim, a princesinha não perdia a sua coroa.
Enquanto isto... meu irmão e eu dançávamos rock
Quando meus pais saiam pra jogar bridge com a turma deles, logo chamava minhas amigas do prédio. A nossa sala, por morarmos em dois apartamentos, era bem grande.
Enquanto meu irmão botava os móveis para os cantos da sala, eu saía pra comprar cigarros a granel com a minha mesada Quando voltava a Sofia e a Stella já estavam, a festa ia começar.
Botava uma roupa de mãe, pegava o licor de ovos na cristaleira, distribuía os cigarros e o Elvis na vitrola. A festa começava. Uma vez deixei um vestido de festa da minha mãe em tiras. Ali comecei a perceber que seria uma rebelde.
A minha formação teve duas raízes muito fortes. Duas raças que se interagiam numa guerra fria.
Do lado russo minha mãe, corajosa, destemida, abraçava toda familia, e ainda se guardava pra Tchaikowsky Dostoyevsky com suas tragédias que é uma caracteristica do povo russo.
Ahhh... incluia Carmem de Bizet e o Haraquiri claro da madame Buterffly.
O outro lado alemão (meu pai), que quando saiu da Alemanha, era estudante de medicina e chefe de escoteiros, que eram muito respeitados pois faziam parte de um exército juvenil.
Imaginem na Alemanha!!! Meu Pappyschön sempre tinha um sorriso no rosto, uma alegria de viver, da raça mesmo...
Adorava Mozart, lia pra mim contos de Handersenn e me ensinou à fazer conta (aritmética ) de cabeça.
Sempre tinha um carro novo, rabo de peixe, dos anos 50 e 60, todo o final de semana nos botava nele e, estrada, era mais uma aventura. Minha mãe, ia ao lado compartilhando plenamente da viagem.
Assim me ensinaram à pegar estradas sem ter medo de ser feliz.
7 comentários:
clarice ge disse...
Martinha, estou adorando ler tuas memórias. Em alguns trechos lembro de nós, naquela fase tão cheia de descobertas da adolescência. As pequenas transgressões que fazíamos eram inocentes, ingênuas mesmo, se comparadas as mudanças que vieram com outras gerações. É super bacana ver que tua 'rebeldia' te levou a alargar teus horizontes, sem perder tua verdadeira essência. Quando eu lembro de ti, penso em alegria e muitas risadas.
Queridona, estou sempre ansiosa pelo próximo 'post'.
beijosssss
Marta Schönfeld disse...
Clarice!
Adorei que me escreveste. Quando escrevo, a nossa história me acompanha, pois tudo começamos juntas. Tu não imaginas o prazer que sinto ao recorda-la.
Beijos
Adroaldo Bauer disse...
O que os mitos e tabus impõem a seres tão comuns que somos, e se erguem como barreiras tão descomunais entre pessoas quaisquer, iguais, não tá no gibi.
Toda ficção deveria se entendida como tal.
Toda religião é isso, ficção simples.
Entanto, aparece como verdade, tais quais ideologias outras a dominar, abomináveis as verdades simples dos dias das pessoas comuns que apenas poderiam sorrir e amar.
Anônimo disse...
Anna Cristina Pereira Rosa Pérolas que não se usa no pescoco!
Anônimo disse...
Anna Cristina Pereira Rosa Pérolas que não se usa no pescoco!
Lizete Vicari disse...
Marta, que bela história!
Não é por acaso que és a mulher sensível
que és hoje!
Um beijo em teu coração minha querida!
Anônimo disse...
Aos amigos que fizeram comentários, quero agradecer de todo coração, pois é sempre bom saber se gostam das minhas histórias! Incentiva!