Sou um compêndio de religiões. Acredito no espaço que se abre para meu corpo e com ele, meu espírito.


No meu caleidoscópio de vida, nasci também de um casulo de borboletas e passei a morar numa caverna. Lá a sabedoria era o sol, que nos guiaria, acenando do lado de fora.


A beleza era a prova indiscutível da saúde possível. A sedução, a riqueza da alma, alma que lançava no universo do nosso imaginário seus sinais poderosos, a pescar a suavidade necessária para a caminhada longa e reveladora.


Nesta caverna também existia muita alegria, muita música. Nós nos vestíamos para brilhar uns diante dos outros, festejando um bem supremo: a amizade.


Dançávamos em volta da fogueira, reconhecendo a abundância da natureza. Isso fazia com que as noites se transformassem em mil e uma noites. Vivíamos então a totalidade, com sabor de amor.


A cor de nossas vestes vinha das flores e das borboletas das matas, brincando em volta da nossa caverna. Quando o sol brilhava entre as árvores, multiplicava-se em mil sóis, num jogo de luzes irresistível.


O mel tinha gosto de laranjeira com canela. Nossa comida era feita com tanto amor que se tornava uma poção mágica. E as noites, por isso talvez, acendiam-se e nos acendiam, sob a luz da lua e das estrelas.


Retomar aquela época é revisitar a presença sempre significativa de minha mãe. Sonhadora, criou-me com os requintes de Grace Kelly. Líamos constantemente as fábulas e todo o conteúdo incrível da coleção Mundo da criança. Era uma série composta de 15 volumes, editada pelo  ano de cinquenta. Na ordem, "Poemas e Rimas" e "Contos e Fábulas" eram os meus favoritos. Os outros 13, nem me lembro porque não me interessaram tanto assim.


Minha mãe era uma pessoa muito culta: extraía ensinamentos de filmes da época e os dividia comigo. Ela era, de fato, uma Sherazade. Contava-me histórias românticas, recostadas, as duas, na cama, eu me aconchegando junto a ela, ela mexendo nos meus cachos e desfiando histórias que deliciosamente não acabavam nunca. É como se vivêssemos dentro do livro "Mil e uma noites". Momentos que nos transportavam para um paraíso particular. Nesse mesmo tempo, ela me mostrava as mudanças das estações, as suas belezas. Muitas vezes me sentava embaixo das árvores, me apontava o caminho das formigas, e sua sociedade.


Esta foi a propriedade que a sacerdotisa (minha mãe) me deu. Transcender em meio ao deserto de uma sociedade autodestruidora. A cada novo dia eu renascia e esse renascimento sempre começava na noite anterior.


Assim vivi e vivo até hoje.

A história da história da História...

Enquanto eu sonhava com a Sherazade, Getúlio, presidente do Brasil, cuidava para que seu afilhado João Goulart ficasse por perto durante o estado de Direito. Este o ajudou a implantar o Salário Mínimo e mais tarde o 13 Salário. Getúlio era muito amigo do coronel Vicente, pai de Jango.Era costume entre as Famílias de São Borja, os coronéis, serem padrinhos, Getulio teve como  afilhado o Jango que botou a dar os primeiros passos dentro da política, fazendo dele seu braço direito.
 



Filmes da época



Minha mãe então começava a ser uma mulher de negócios. Moderna e determinada, resolveu trabalhar. Arranjou uma fonte de importação que lhe trazia as mais lindas roupas de cama e mesa que havia na Europa.
O mercador conseguia peças para enxoval,lençóis de linho italiano com prometi, bordados suaves em cima de organdi suíço, e rendas francesas. Era um negócio rentável e inédito, como ricas eram as clientes que podiam comprar.
Logo, logo, minha mãe já tinha o dinheiro pra adquirir um carro à vista, não sei se existia a prazo, fruto do seu próprio esforço. Lembro como se fosse hoje, nós duas na antessala de uma casa, e a minha mãe pagando com um certo orgulho – justificável – o primeiro de muitos que teve depois. Era uma baratinha preta da marca Morris. Assim ela se tornou a primeira mulher a dirigir na cidade, ou a segunda, pois tinha uma senhora que também dirigia.

Imagina a minha mãe linda, com seus 27 anos, levando meu irmão e eu para o colégio. Isto suscitou a curiosidade das mocinhas do Americano. Me pegavam na hora do recreio, sentávamos no campanário em frente a uma igrejinha metodista do próprio colégio, e aí começava um colar de perguntas sobre a nossa vida...


Como era ter uma mãe assim?


Eu, como era a única mãe que eu tinha, não sabia responder, pois não imaginava como era ter uma mãe não assim.


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15 comentários:

    Flavia Alvarez disse...

    Oi,Marta..recebi a indicação da Tita, para entrar no teu blog.
    Achei muito legal...e o titulo me chamou a atenção..pois sou de São Borja. Vi comentarios sobre D.Amelinha Marques,que tb fez parte da minha infancia,pois o Dr.Say e ela eram amigos de meus pais,e sempre quando em SAO,estavam la por casa.
    Te desejo o maior sucesso, e estarei sempre olhando ele.Flavia Alvarez

  1. ... on 17 de agosto de 2009 às 13:06  
  2. Unknown disse...

    querida!
    cada vez que entro e leio me delicio;
    com a historia e com a forma.
    ja te disse que adoro tua maneira de escrever; é uma viagem, vejo o filme passar.
    venho sempre!

  3. ... on 23 de julho de 2010 às 06:25  
  4. Paulo Bentancur disse...

    Marta,

    imagino a tua mãe lendo nisso. Nossa nem quero pensar! Nem um temperamento tão forte e nem um talento para as inciativas, somado à sensibilidade de quem se flgra sendo retratado, resistiria. Eu, particularmente, não resisto quando vejo a grande arte que desenvolveste em ressuscitar um tempo já ido mas trazido novamente por ti, com suas figuras impagáveis e seu modo de viver que faz deste nosso mundo de hoje em dia quase um universo à parte. Parabéns pelo bem que teus textos nos fazem, a nós, que te lemos e relemos.

    Beijos do teu fã, leitor sempre desta tua saga pessoal.

  5. ... on 24 de julho de 2010 às 14:23  
  6. Anônimo disse...

    Cara bloguqiera,

    um texto como esse que você consegue, não sei como!, escrever tem tantas coisas: tem saudade, sim, mas também tem poesia e tem principalmente um jeito novo de nos recuperar o tempo JAMAIS perdido. Você salva o passado e estende para mais à frente o presente do qual tanto precisamos. Continue mais e mais...

    Beijo e obrigado!

    Júlia dos Santos Mattos (Franca, SP.)

  7. ... on 24 de julho de 2010 às 14:26  
  8. Anônimo disse...

    Oi, Marta:
    você não me conheces mas eu a conheço, isto é, é como se eu a conhecesse depois de ter lido tantos momentos especiais que você, de forma muito, mais MUITO especial, consegue trazer de volta através do difícil túnel do tempo. Fico encantada, impressionada mesmo. E é uma delícia reviver aquilo que eu nem cheguei a viver de verdade. E agora são verdades para mim.

    Sandra Melo - juiz de Fora, MG.

  9. ... on 24 de julho de 2010 às 14:42  
  10. Anônimo disse...

    "Grande Marta! Linda e poética. Precisamos mais disso. Mente e peito abertos queimando nossos desertos..."

  11. ... on 24 de julho de 2010 às 15:12  
  12. Anônimo disse...

    Marta,

    consegues algo que me parece muito raros num texto: unir a memória evocada à emoção lírica de quem jamais abre mão da beleza das descrições para, através delas, chegar até os dias que se foram e que tu também foste, agora, para trazê-los de volta. E estão de volta. Palmas para ti!

    Raul Lopes Coelho, de Passo fundo, RS.

  13. ... on 24 de julho de 2010 às 18:48  
  14. Anônimo disse...

    Oi, artista e mulher! Se eu escrevesse 10% do que tu escreves... Se eu vivesse 10% do que tu vives... Quanto prazer em ler você, quanta vida, biografia! Mas me contento (fico mesmo feliz) em ler postagens como esta. E me sinto, de alguma forma que não sei expliar, personagem também. Acho que é este o milagre da leitura! Óbvio: da leitura dos bons textos! Continue fazendo essas maravilhas, Marta. Um abraço da

    Ruth Marcondes David – Francisco Beltrão, PR

  15. ... on 24 de julho de 2010 às 19:02  
  16. Anônimo disse...

    Marta, Marta:

    me permita dizer que seu texto torna os dias de quem os lê mais dignos de também serem lembrados. Terei assim eu as minhas memórias. No mínimo pelo fato de ser leitor de DE PARIS A SÃO BORJA. Podia estar lendo bobagens por aí. Mas não, estou aqui, lendo e passeando pelo seu blog, como se passeasse por um jardim onde verdades florescessem debaixo do perfume do tempo. Você nos inspira.

    Elizabeth Cintra Paes, São João d'El Rey, MG.

  17. ... on 24 de julho de 2010 às 19:08  
  18. Anônimo disse...

    Prezada Marta, seu texto nos emociona da primeira à última linha. E aí não nos resta outra escolha: ler tudo de novo, da primeira à última linha. E se emocionar outra vez!


    Cláudio Schultz Hartz - Nova Petrópolis, RS.

  19. ... on 26 de julho de 2010 às 14:32  
  20. Marta Schönfeld disse...

    Agradeço todos os lindos comentários. Fiquei bem feliz! Obrigada Marta

  21. ... on 26 de julho de 2010 às 15:40  
  22. Anônimo disse...

    Marta,

    ei, quando vem o próximo post? Dá uma vontade ler você todos os dias. Desculpe o abuso, mas é vontade mesmo.

    Um abraço afetuoso da

    Maria Mirtes de Almeida (Piracicaba, SP)

  23. ... on 27 de julho de 2010 às 10:18  
  24. Marta Schönfeld disse...

    Maria Mirtes! Bem que eu gostaria de postar um texto por dia, mas como faço a redação durante a semana, não dá tempo. Estou fechando várias historias e acho que vou conseguir abreviar este tempo.Todas as sextas sempre tem um novo capítulo!
    Abraço

  25. ... on 27 de julho de 2010 às 16:15  
  26. clarice ge disse...

    saudades da tua mãe!

  27. ... on 5 de novembro de 2015 às 16:43  
  28. brunetchi disse...

    adoro ler seu blog , Marta! beijosss

  29. ... on 25 de agosto de 2021 às 17:25