Vicente Luis Goulart do Valle e Henrique Goulart do Valle, respectivamente

Ao amanhecer, mandaram a família sair sob a mira de várias armas, as melhores do Exército.

De mãos para o alto, viram seus pais desaparecerem dentro de um carro-prisão, levados para o Dops (Departamento de Ordem Política e Social, criado em 1924 e extinto em 1983, com o objetivo de controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime).

Quando o cachorrinho de estimação do Henrique (5 anos) procurou seu dono, as armas ainda apontadas, um dos militares perguntou gentilmente para o menino:


“Como é o nome dele?”

Henrique respondeu:

“Russinho.”

Diante da inocente resposta da criança, havia um mar de lama que ela não conseguia entender, o nome do cão parecia esconder algo ameaçador, e, claro, a fantasia paranóica do soldado viajou longe.


Achava, o militar, cabeça feita (no pior sentido), que até mesmo atrás de um simples menino e um cãozinho havia um segredo político – será? Ou talvez um recalque por não ter as mesmas condições para viver que a família Goulart.

Mandaram a babá com as crianças dirigirem-se até um comboio das Forças Armadas. Escoltados, sob a mira das metralhadoras, apreensivos, não sabiam exatamente para onde estavam indo.

Os militares que não estavam no comboio, à espera, permaneceram no sítio, saqueando o que lhes interessava – como já estavam fazendo com todo o patrimônio daquela família de posses e de uma importância social que incomodava o poder.

Levaram a babá e as crianças para casa, no Leblon, lugar de poucos prédios. O deles, da família Goulart do Valle, era um prédio de apenas três andares. No terceiro, morava a família Goulart Brizola, no segundo, minha sogra. No térreo, o regente da Orquestra Sinfônica.

Quando chegaram na quadra do edifício, viram que tinha um exército inteiro com tanques e armas. E o povo em volta para ver os subversivos descerem do carro-prisão.

Quando desceram do camburão, como será que foram vistos pela multidão, mesmo? Ou como será que eles sentiram esta aberração política em cima deles?, inocentes.

Dali os jovens foram retidos em seu apartamento, sempre com militares na porta. Adelina - como meu sogro escrevia, era jornalista - fez uma limpa, tirando o nome dele de todas as reportagens e discursos que ele tinha feito para Jango, inclusive o de posse. Sobrando, desta forma, manuscritos sem nome.


Também, numa noite, Adelina subiu pé ante pé até o terceiro andar, entrou engatinhando no escuro, e pegou documentos que poderiam comprometer a família Brizola.



Quando iam à praia, eram escoltados desde a porta da rua. Os militares permaneciam na praia, vigiando-os. Os pais continuavam desaparecidos no Dops.
No terceiro dia após o golpe, Sara Kubitschek, que era muito amiga da Tarsila, foi visitá-la para dar-lhe um apoio diante da situação. Foi então que soube do desaparecimento dos pais das crianças. Ela promoveu uma autêntica revolução entre os militares, atrás da amiga e do marido desta.

Encontrou-os. Algumas horas depois, já estavam em casa.

Sujos e envelhecidos.





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6 comentários:

    Anônimo disse...

    Brava Marta,

    permita-me chamá-la assim. Vivi esse tempo. Eu tinha então meus 20 anos. Nunca mais esqueci. Nunca mais me recuperei... Sim, me recuperei, casei, tive filhos, trabalho etc. Mas certas marcas, mesmo que sigamos adiante, não se apagam jamais. E seu texto traz a marca dessas marcas.

    Bato palmas pela sua coragem e talento em reconstituir uma época tão lamentável para todos os brasileiros. Seu blog está muito emocionante. Haja coração!

    Celina Marcondes Viegas - Olinda, PE.

  1. ... on 17 de novembro de 2009 às 11:13  
  2. Marta disse...

    Querida amiga Celina!
    Muitíssimo obrigada pelo seu grande elogio, eu é que fiquei emocionada.Na verdade sou uma contadora de histórias. Talvez se tivesse que imaginar uma, não saberia. Eu mesma fico admirada como vivi tão profundamente a minha vida, mas falo forte sobre o que se passou que estava tão guardado que até minha filha às vezes me pergunta: Isto é verdade? Marta

  3. ... on 18 de novembro de 2009 às 10:02  
  4. nara lisboa disse...

    marta querida!

    adoravel leitura! estou me deliciando! nao sabia deste teu "outro" grande talento!
    beijos gigantes

  5. ... on 18 de novembro de 2009 às 12:15  
  6. Anônimo disse...

    mama to adorando o teu blog... O Adam esta perguntando quando tu vais contar como tu conhecestes o meu pai? To muito orgulhosa de ti!!!
    Sybil

  7. ... on 19 de novembro de 2009 às 09:48  
  8. Paulo Bentancur disse...

    Grande Martinha! Como consegues esse milagre de ser uma forte, uma guerreira e, ao mesmo tempo, transmitir entusiasmo, estímulos? As guerreiras em geral são carrancudas. Ou parecem ser. As alegres não têm memória. E tu tens tudo de bom, guria. Passei minha adolescência por esses Anos de Chumbo. Amarga lembrança. E te lendo, me espanto com tua capacidade de ressuscitar um determinado episódio de um tempo que (tirando tua biografia e tua merecida felicidade), ainda bem, está morto.

    Parabéns!

  9. ... on 21 de novembro de 2009 às 09:49  
  10. Anônimo disse...

    Nara Lisboa comentou sua mensagem no facebook:

    "tá, querida! aviso sim! mas sem rasgação de seda, escreves de uma maneira fluente e agradável! muito bom! além das histórias, que sao interessantíssimas, pois fazem parte da História, vistas por um prisma que, acho, ninguém nunca ousou! parabéns de verdade, Marta, não tenho o hábito do elogio futil! beijo, querida, e quero o livro! lança pela LPM, os guris vão adorar!"

  11. ... on 21 de novembro de 2009 às 12:14