Na volta de Saint Tropez para Paris, eu sabia que iniciaria uma nova aventura necessária: procuraria uma casa para alugar.

Sabia que até então, não tinha vivido com esta liberdade toda na Cidade Luz. Estava necessitando mais cultura.


Eu não tinha compromisso com a Norma De Monjou, só o de ir à sua festa.


Logo que desci do trem, estava decretado: casa da Luana.


Ela morava no XVéme, e ficou feliz com a minha chegada. Era uma mulher muito conhecida, mas não deixava de ser uma solitária.



Cansada do discreto charme da burguesia – "Ulaaa lá!?!" –, resolvi estudar na Aliança Francesa.

Logo, logo, na casa de Luana, apareceram Vinicius de Morais e o Toquinho. Estavam em Paris fazendo show no Olimpia.


Para não ficar o dia inteiro no hotel, iam antes do almoço e ficavam até a hora do show na casa dela.


Eu não disse? O universo estava ao meu favor!


Almoçávamos em algum bistrô. Logo, eu e o Toquinho começamos a atirar charme um para cima do outro. 


Passávamos a tarde conversando na sala da Luana.

Pouco, não?


Eu deitava numa rede e ficava admirando-os. Às vezes cochilava o sono dos felizes, embalada pelo violão e a voz do Vinicius.

Ficamos, Toquinho e eu, durante aqueles dias, encantados um com o outro. O que durou uma eternidade e terminou em duas semanas.


Aprendi, rapidamente, a lição do meu mestre de então: Vinicius de Morais.

"Que não seja eterno posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure."



Assistia todas as noites ao show como convidada. E, no própio Olimpia, ia conhecendo outros e outros artistas. Até que os dois voassem novamente para o Brasil.

O espetáculo tinha que continuar. Afinal de contas, eu ainda tinha no final da outra semana a festa da Norma, onde iria conhecer aquele rapaz super bem falado pelas mulheres que eu conhecia, e que se chamava Rony.

Os dias transcorreram; minhas aulas na Aliança Francesa iniciaram.

Numa tarde, encontrei-me com a Bette Zambrano, minha amiga de Pelotas, que também estava buscando um lugar para morar.


Através de uma indicação de uma amiga sua, no dia seguinte Bette ia ver um pequeno apartamento na Île Saint-Louis.



Île Saint-Louis

Deu-me o endereço: 29 Quai d’Anjou, e combinamos de nos encontrar às dez horas da manhã em frente ao apartamento que nos abria as portas da curiosidade.


Nossa futura casa?


Tive novamente a sensação de estar me desprendendo de mim mesma, pois esta resolução era realmente mais um voo: dependia só de mim.


Viajava de séculos em séculos, em apenas alguns meses, dentro de Paris, mas eram suficientes para a minha curiosidade de escutar as vozes daquelas paredes. De entender todos os registros do século XIV.


Elas me contavam todas as histórias que por ali passaram. Bastava entender da arquitetura do lugar. O desenho das habitações tinha voz e narrava suas memórias.


Bette era necessária; o estímulo, a força, esta eu extraía de mim, apenas de mim, e, talvez, daquela menininha, sempre junto quando das minhas maiores decisões.


Para chegar na pequena ilha, passei por Saint-Germain, Saint-Michel, e no final pela igreja Notre Dame, sempre ecoando um novo coral, de qualquer parte do mundo, que se empenhava a cantar ali o melhor que já havia cantado. Ajudados pela acústica da igreja, naturalmente.


Fiquei encantada quando entrei na pequena ilha.


Como as habitações eram cocheiras antigas, achei que morar naquele lugar era sinônimo de simplicidade – mal sabia que a ilha era poderosa também –, o inesquecível Quai d'Anjou, construído no século XIV.


Logo ao chegar, percebi que a vida tinha me levado ali para compreender melhor o rio Sena, suas pontes, seus segredos.


Será que queria me dizer que através dele eu iria conhecer outros rios? Assim sendo perseguida sempre pela teoria de Heráclito: "Nenhum homem pode banhar-se no mesmo rio sem que outras águas passem sobre ele".


Não estava sonhando! Iria morar numa mansarda (seis lances para subir) como algum dia várias La bohèmes haviam vivido suas alegrias e tristèsses.


Aquele tipo de construção dos tempos dos palácios, eram ali onde os empregados moravam, junto às cocheiras.


Do local podia avistar o grande palácio, na outra esquina, Notre Dame mais atrás, e algumas das construções mais antigas de Paris.


Da pequena janela podíamos ver a igreja Sacre Coeur, branca, majestosa, espiritual, com suas cúpulas para o céu, mudando de cores dependendo das estações e da hora do dia.


Sem entender bem o que estava procurando, acabava de encontrar cara a cara.


Prestes a habitar o apartamento que acábavamos de descobrir, meu coração estava tomado por aquele século ainda desconhecido para mim.


Mais uma vez, a menina que nasceu exilada teve outro golpe. O dono do pequeno apartamento que íamos alugar não quis fazê-lo quando viu meu sobrenome: Schönfeld.


É... de tempos em tempos, a vida me mostrava o racismo, sempre tendo que ser resolvido, a ponta de faca.


A Bette teve que negociar durante longas duas horas até convencê-lo que não tinha sido eu a mentora da Segunda Guerra Mundial.


Até hoje não sei se era por ser judia, ou alemã: não tinha só um problema com o meu sobrenome. Além de ser judeu, pois quer dizer "Campo Bonito", ele também era germânico e a sombra de Hitler ainda era pesada demais.


Conseguimos, porém.


Naquela noite, sonhei com uma grande fogueira, com o Judas queimando dentro. Escutava ao longe o povo berrando: Judéia! judéia!


Claro que conseguimos! Quando acordei do pesadelo, já tinha uma resposta positiva. Sim, a Île Saint-Louis não perdia por esperar... Em quinze dias duas lindas gaúchas iriam lá habitar.


No fundo, fiquei com um gosto amargo, mas se eu não tivesse conseguido, não teria o que narrar da melhor fase que passei em Paris.


A festa da Norma se aproximava. Logo conheceria o Rony, aquele sublime espécime de anjo – seria mesmo?


Anjo ou demônio?


Junto ao natural e inevitável sentimento de curiosidade para ver Rony, havia o fato de uma emoção a se somar a todas as outras.


Por enquanto, eu me deliciava com a perspectiva de morar naquele lugar que senti íntimo. Depois fiquei sabendo que se tratava do melhor endereço, junto com a Place des Vosges, que se pode ter em Paris.


Na casa de Luana começava o frenesi da ante-sala da festa. Do Rio de Janeiro vinha uma conhecida de minha nova amiga, para hospedar-se lá, a Dodora, e uma outra amiga minha, a Solange Moacir, também passando por Paris, e que ia todas as tardes para a casa da Luana.


Começamos a borbulhar como champanhe, essa era a nossa energia, a nossa alegria. Levei dois dias fazendo touca para alisar o cabelo - para uma lado, para outro -, além de lavar a cabeça com água gelada, para que os fios ficassem bem sedosos.


Roupa nem pensar! Roupa era uma loucura! A Luana, no seu quarto grande, tinha três araras, como aquelas de desfile, só de roupas maravilhosas. A Dodora e eu passávamos as tarde experimentando roupas e brigando por uma só peça!


O fundo musical era Champanhe, do Pepino Di Capri. Aquilo era tão divertido que no fundo estávamos brincando novamente de ser gente grande.


Durante estes encontros naquela casa, comentei que Natalie e eu iríamos fazer um cruzeiro de Nápole à Sardenha, no grande barco de Justino, namorado de Marilda.


A Sosso, muito vivaz, falou-me: "Diga a ela que temos um grande amigo em comum e que eu gostaria de conhecê-la".


A noite da festa chegou; quando entrei na imensa e suntuosa sala da minha amiga, bastou apenas um olhar, "un coup d'oil", e nós dois, Rony e eu, já estávamos perdidamente apaixonados.


Falamos pouco, pois ali não dava espaço para nenhuma demonstração, mas sabíamos que o nosso destino estava cruzado.


No meio de tudo isso, quando eu achava uma nova casa (mesmo temporária) e um novo amor (por quanto tempo?), certamente estava eu própria, uma Marta cada vez mais inteira.


Esse retorno por Londres me deixou livre, leve e solta. Não encontrei meu amigo Homero Lopes; talvez não fosse mesmo o momento de deixar minha Paris.














This entry was posted on 01:00 and is filed under . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0 feed. You can leave a response, or trackback from your own site.

5 comentários:

    Carla Volkart disse...

    Hi Marta!
    Esse prana é mágico!!! Minha intuição diz que vai ficar cada vez melhor. To curiosa pelos próximos capítulos....Carla

  1. ... on 27 de janeiro de 2010 às 18:53  
  2. Anônimo disse...

    Marta,

    achei muito bonito esse negócio de uma nova casa e um novo amor. Belo "casamento" de imagens, de ideias. Beijo do teu leitor


    Armando Bagno Filho (São Paulo. SP)

  3. ... on 28 de janeiro de 2010 às 12:57  
  4. Anônimo disse...

    Cara blogueira:

    Há frases nos teus posts que dá vontade de a gente colecionar. Esta é uma delas: "brincando novamente de ser gente grande". Uma frase que diz muito mais do que aparenta. Parabéns pela profundidade disfarçada delicadamente em superfície (para ser mais fácil de ler). Abraços.

    Júlio Torres Almeida - João Pessoa, Paraíba.

  5. ... on 28 de janeiro de 2010 às 19:09  
  6. Anônimo disse...

    Marta!

    Quantas vidas nu´ma única vida! Eu leio e fico horas pensando, como se tivesse saído do cinema. Passas, em teus posts, cenas no mínimo "cinematográficas", mesmo algumas sendo leves, despretensiosas. Ora, a simplicidade e a franqueza são maiores wuer a pretensão. E com tua forma transparente de narrar, e ao mesmo tempo tendo tanto para contar, terminar por nos oferecer efetivamente algo imenso. Tua vida. Ou melhor, TUAS vidas!

    Parabéns.

    Emerson Lucas Villar - Santa Rosa, RS.

  7. ... on 1 de fevereiro de 2010 às 07:58  
  8. Anônimo disse...

    Impulsiva e ao mesmo tempo cuidadosa Marta! Corajosa e responsável. Te acompanhando, vamos, à medida que te descobres, que te encontras, vamos, nós também, nos descobrindo, nos encontrando. Mesmo que moremos e vivamos muito mais para o lado de São Borja que de Paris! Grande blogue...


    Mário Lobato Nunes - Juiz de Fora, MG.

  9. ... on 3 de fevereiro de 2010 às 18:56