Na volta de Saint-Tropez, eu me perguntava: será que eu iria retornar de um lugar paradisíaco com aquele sol do mediterrâneo e apagar esta cena da minha memória?

Não, da minha memória, não, mas do meu presente.

Bem, aí a conversa era outra. Eu precisava de uma estrela diferente. E não uma estrelinha de quinta grandeza.

Sim porque estou me despedindo nesse momento de um Mediterrâneo cujo único objetivo era nos deliciar com aquele mar, com aquele sol, com aquelas pessoas, aqueles Rolls-Royce...

Quem sabe eu já não estava mais gerando nada naquele caminho?

Comecei a pensar novamente em Herman Hesse e em seu livro Demian. "A ave sai do ovo; o ovo é o mundo; quem quiser nascer precisa destruir o mundo."


"Destruir"... Palavra forte demais!

Custei a perceber que tinha um poder. Às vezes ele vinha de onde eu queria, do centro da minha alma. Às vezes ele era mal-interpretado, e me refiro, aqui, ao meu corpo. (Diziam, principalmente os homens: “é lindo!”).

Mas no dia-a-dia esse corpo me atrapalhava. Eu poderia escolher o que quisesse, inclusive até mesmo (credo!) viver do corpo.

Minha carne doada ao Deus dará, me sustentando...

Tal coisa não abria sequer uma possibilidade para mim, agredia minha personalidade – o uso da própria atração física que se exerce sobre os outros para adquirir coisas materiais.

Claro que me cutucavam de tudo que é jeito; claro que eu pensava naquilo tudo, pois estava acostumada no Brasil a ter e usar as melhores coisas.

Sentia que era hora de me reencontrar novamente com aquela menininha de caixinhos dourados, mas ela me olhava de longe, piscando aquele olhinho maroto e me assoprava no ouvido e eu no ouvido dela: "comporte-se".

Acho que ela me dizia: "ainda não é hora!".

Comportar-se era compor-se, refazer-se, crescer ainda mais. Para além das estações, não importava quais fossem.

E eu ainda era aquela “pequena”; não queria me afastar, jamais, do meu amor-próprio, muito menos da minha amiguinha de toda a vida.
Aquele apelo me fazia voltar mais ainda às minhas raízes, me tornava mais digna nas escolhas pessoais, as mais importantes.

Eu tinha de continuar a merecê-la.

Filha da fantasia da minha mãe e da nobreza de meu pai, e filha, também, da lucidez que a liberdade conquistada por mim mesma me dera - só porque a liberdade era legítima, não era libertinagem.

meus pais
Enfim, eu não perdia meu tempo. Ou, como dizem no extremo sul brasileiro, na minha terra: "Não gasto pólvora em chimango".
As vantagens de trair as verdades mais nossas não compensam, eu percebia, o enorme risco que corremos de perder o direito e a liberdade de olhar-se no espelho, todas as manhãs, sem nenhuma culpa.
Como eu tinha que arrumar algum lugar para morar, a Norma, minha amiga condessa, convidou-me para passar alguns dias na sua casa, no suntuoso bairro do XVIème, o mais reservado de Paris.

Bem, a Norma então resolveu fazer uma festa em sua residência. Convidou todos os amigos que tinha, mais os de Saint-Tropez, e, evidentemente, a Sosso, minha amiga brasileira.


minha amiga Sosso

Novamente surgiu aquele ar de cidade do interior.

Nas coxias da festa, escutei falar de um brasileiro de São Paulo que era um divino espécime masculino: Ronny Hopckor. Não me lembro muito bem do sobrenome, é verdade, mas se não for exatamente assim, é muito parecido.

Me recordo que ele era filho dos donos da Kopenhagen, chocolate maravilhoso no Brasil. Comecei a ficar curiosa com o que ouvia sobre ele. Tinha 28 anos e vivia com uma paulistana de 42.

Minhas anteninhas ficaram ligadas, senti que algo bom ia acontecer para meu coração. Fiquei quieta, bem quieta!

A postura do parisiense com a volta das férias mudou completamente, para minha surpresa.

Imediatamente, começaram a falar mais em grupinhos, mais baixo, e raramente se escutava uma gargalhada. Podia se escutar um pequeno "Uh, lá, lá!".

As roupas logo passaram para o preto e branco, viagem da Channel, a meu ver, que, charmosa estilista, nunca abria mão dessa solução visual que a satisfazia tão completamente: o P&B!

"O preto domina tudo, assim como o branco; eles são belezas absolutas. É a harmonia perfeita. Coloque uma mulher de branco ou de preto num salão de festas e todos os olhares estarão nela..." dizia Channel.

É impossível não lembrar dela com sua bela camélia branca sobre uma lapela negra. “A dupla clássica, preto e branco”, declarava para a posteridade.

Tais pensamentos, tão rígidos para a época, fundamentalmente sempre foram verdade. Mas o que era verdade para um mundo onde Betty Friedmann e suas seguidoras queimaram os sutiãs nas ruas, significando o final da escravidão feminina? Onde Mary Quant deixou as pernas das mulheres de fora?

Os jovens foram escolher suas roupas nos séculos.

A uniformidade dos anos 50 havia se desintegrado nos anos 60, e nos 70, principalmente em Londres, tornara-se um só coração: “Paz e amor".

Destas futilidades eu gostava.

O que me levava a torcer o nariz é que eles também mudaram de personalidade. Tomaram uma atitude meio cínica, alegre, e se tornaram aborrecidos para mim.

Já não era tão engraçado o Jet set. Afinal, eram totalmente previsíveis aqueles valores.

Eu começava a achar todo mundo meio fingido.

Meus amigos no Brasil eram muito mais divertidos: procuravam trilhas nativas para brincar no mar com as suas pranchas, que eram de madeira na época.

Fazíamos planos para viajar através da América do Sul, de carro ou de carona.

Não eram tão internacionais, esse amigos, mas estavam sempre prontos para a maior das aventuras.

Desbravávamos Santa Catarina. Descobrimos, primeiro Imbituba, depois Garopaba, principalmente (referência nacional no que se referia à vida natural).

Dormíamos em saudosas malocas. Em engenhos de pescadores, geralmente na beira do mar.

Eu não sabia o que queria – isso lá era verdade –, mas eu sabia que queria mais, muito mais.

Cada revolução era um crescimento, e eu queria, sim, crescer. Por dentro, intimamente. Afinal, o psiquiatra já havia me dito: "Você tem que se encontrar".
Mas até agora nada: eu não sabia onde estava!

Procurava que nem num espelho facetado, de uma ponta a outra, e encontrava o fim do caminho e o eco de milhares de imagens se abrindo...

Nesta volta de Saint-Tropez, apesar de continuar com as mesmas amigas, não continuava da mesma forma, eu as achava escravas do ócio e de um certo excesso de vaidade.

Vaidade faz bem, mas até um certo limite.

Com a Natalie, que era somente um ano mais moça que eu, era diferente. Ela era diretora de vendas do Cartier, apenas com vinte e três anos. Viajávamos pra lá e pra cá, mas nesse caso eram sempre programas mais exclusivos, como sempre gostei.

Francesa ela era: vivia me cobrando que eu deixava passar pretendentes que podiam me dar uma vida fabulosa na Europa.

Ela também queria que eu melhorasse meu inglês para ser sua secretária. Aprimorar meu tupynglês? Tudo bem, mas quanto a ser sua alguma coisa?

Não, naquele momento eu era da vida!

Eu não podia assumir nenhum sonho capitalista! Mas me beneficiava com um bloco todos os meses que davam para os trabalhadores do Cartier.

Com este, eu podia andar de táxi por toda Paris. Logo, chamava-o todos os dias ao entardecer. Saía para dar uma volta na cidade, fazia o táxi me esperar para comprar bombons e cigarros. Ia aos restaurantes e pubs...

Senti, no entanto, que em Paris não era possível ser tão fútil.

Resolvi, fazer um teste na Aliança Francesa: queria concluir meu curso.

Minha juventude estava em risco.

Nem pensar! Percebi que a decisão mais ousada seria, como eu já havia pressentido e admitido antes, agarrar-me fortemente, durante esse percurso, na minha educação.

Daquela forma estava no mínimo prolongando – talvez para sempre – a minha jovialidade, o meu frescor, o meu ímpeto saudável.

Porém, continuava a me perguntar, ansiosa, o que seria de mim?

Meus valores mudaram, comecei a sair da velharada (em volta dos 35 anos) e encontrar gente mais da minha idade.

O futuro, no entanto, não mostrava a sua cara. E eu queria porque queria conhecê-lo, e logo! Se ele demorasse demais, podia perder a oportunidade de ser apresentado a uma nova Marta.

Eu sentia saudade dos meus pais, e dos meus amigos no Brasil.

No fundo, eu queria me casar, como qualquer moça de cidade pequena, como alguém, por exemplo, da Porto Alegre da época.

E o tempo correndo... será que eu iria ficar solteirona?

Sempre pensei, nesses anos todos, que a grande verdade é que eu me escolhi, a melhor das escolhas.

Mesmo sabendo que eu estava deixando o mundo da riqueza fútil de lado.

Mas que lado, afinal de contas?

De alguma forma, a vida me apontava uma sensibilidade especial: a de gostar de uma raça de pessoas alternativas, artistas, mais sensíveis também, portanto mais complicadas.


Qualquer aventura era comigo mesma!











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13 comentários:

    Anônimo disse...

    Oba, novidades! Começando o ano novo com um post riquíssimo em cenas (no que te acho uma mestra) e em reflexões (aonde se chega somente com maturidade). Gostei muito deste, parece que completa um trio perfeito com os outros dois anteriores, fazendo o percurso Paris-São Borja-Paris de novo. Marta, você é um tour cultural, afetivo e social completíssimo! (Risos, mas sérios.)

    Bitocas.

    Lúcia de Freitas Colin (Niterói. RJ)

  1. ... on 7 de janeiro de 2010 às 10:00  
  2. Anônimo disse...

    Marta,

    você acertou em cheio, cara blogueira, pensadora de plantão por todos nós: a melhor das escolhas é mesmo a de optarmos por nós mesmos. Quantos fazem isso? Pouquíssimos, raros. Você foi uma dessas pessoas raras. Você ÉÉÉ uma raridade. E os que a leem tem 2010 inteiro para sacar essa estonteante verdade, a que se refere à mais legítimida das conquistas, a da qual você não se cansa de escrever (e sempre de forma renovada), que é a da alta auto-estima, a de colocar o amor-próprio acima do amor aos demais. Sim, devemos amar, e muito. Aos outros, claro. Para termos uma vida rica de emoções. Mas tudo começa quando nos olhamos no espelhos (no físico e no da alma) e gostamos do que estamos vendo. E você nos mostra isso. Perfeito. Parabéns. Continue sempre! Beijo.


    Maria Luíza Goytisolo - Brasília, DF.

  3. ... on 7 de janeiro de 2010 às 13:12  
  4. Marta Schönfeld disse...

    Amigas!
    Sempre vou agradecer pelos comentários. Adoooro!
    Falando da minha amiguinha, ela sempre me assoprou como uma sacerdotiza:dando o exemplo de uma árvore.
    "Se queres que tua copa creça frondosa, permita que tuas raízes atinjam o inferno."
    Marta

  5. ... on 7 de janeiro de 2010 às 16:38  
  6. Anônimo disse...

    Marta, sempre surpreendendo:

    primeiro ao citar o belo trecho de um livro hoje esquecido, "Demian". Segundo, após tantas peripécias, terminares tua postagem dizendo (mais que dizendo, provando, demonstrando) que estás pronta para seja qual for a aventura que vier. Eta coragem, energia, sabedoria e sede de vida! Grande exemplo, grande texto. Começas 2010 com tudo, cara blogueira. Abraços.

    Elias Antunes Viegas - Rio Grande, RS.

  7. ... on 8 de janeiro de 2010 às 14:54  
  8. Anônimo disse...

    Tem um jeito de escrever que só a Marta tem. OU ela e raras pessoas descobriram, aprenderam, conquistaram: um modo que é justamente o de não separar demais o escrever do falar. A Marta conta tudo o que viveu (e como viveu!) de uma maneira tão solta, tão à vontade, tão fluente, que é como se estivesse à nossa frente, conversando livre, leve e solta, e a gente curte um monte! Isso é estilo. Parabéns, Martinha.

    Felipe Soares Santos - Guarujá, SP.

  9. ... on 9 de janeiro de 2010 às 09:19  
  10. Anônimo disse...

    Caríssima blogueira:

    que modo de apresentar-se! "Tenho os pés no chão, e, a cabeça nas estrelas." Cá para nós: existe maneira maior de ser? Os pés no chão, significando sensatez, lucidez, firmeza no passo. A cabeça nas estrelas, significando imaginação, coragem de voar. E isso, essas duas forças convergentes, isso a gente nota a cada linha lida nos seus posts. Este então, "A melhor das escolhas", Minha Nossa Senhora da Aparecida!, quanta distância percorrida, quanto voo alçado... Você vai longe, cara. Você JÁ foi longe. E quem a lê, vai junto. Palmas, muitas palmas.

    Lucília Farias Mello (Natal, RN)

  11. ... on 9 de janeiro de 2010 às 09:44  
  12. Anônimo disse...

    O que mais gostei deste post é que a Marta aventureira, ousada, aparentemente concordando com toda "porra-louquice" que surgir, de repente se questiona frente ao Jet set internacional e vê que aquilo não leva a nada mais substancial. A Marta aparentemente capaz de se jogar de ponta-cabeça revela-se mais lúcida do que muitos de nós, que nunca nos aventuramos. Achei fantástico esse depoimento: do zero ao infinito! E, compreensivelmente, só podia mesmo ficar consigo própria como a grande escolha. Bela lição (sem moralismos) de vida.

    Rudinei Santos Guedes - Santa Cruz do Sul, RS.

  13. ... on 11 de janeiro de 2010 às 14:55  
  14. Anônimo disse...

    Ei, Marta, mas você é uma figuraça e tanto, hem! (Digo isso com todo o respeito; aliás, com toda a admiração). Quanto risco correu, quanta experiência permitiu-se, quando cuidado tomou para não quebrar a cara sem necessidade. E, principalmente, que faro raro você tem para identificar as coisas boas, de grande significado da vida. Vida que é sua e que você oferece a todos que têm a sorte de ler você.

    Estou adorando! Aliás, eu e minha "família", ou seja, minhas amigas. Beijo.


    Letícia Mallard Cunha (Sampa, SP.)

  15. ... on 11 de janeiro de 2010 às 15:11  
  16. Anônimo disse...

    O que mais mexeu comigo, cara blogueira, é quando você anuncia que está deixando de lado parte de um mundo de prazeres e luxos e belezas, e então, filosoficamente, você pergunta-se mas de que lado fica esse mundo (ou seja, do seu lado,ou contra você, sendo esta uma das tantas interpretações que a observação, como toda boa observação, propicia nos bons textos, isto é, nos que tem grandes sacações).

    Vale a pena ler você, muito!


    Lúcio Cardozo Mendonça. Santos, SP.

  17. ... on 12 de janeiro de 2010 às 09:58  
  18. Anônimo disse...

    Olá, viajante incansável, de Paris a São Borja, de um continente a outro, como uma exploradora moderna fazendo o percurso dos tempos remotos:

    quando vem um post novo? Quando?

    Tuas histórias me ajudam a atravesar o Atlântico, de um lado a outro. Quero mais!

    Grande abraço.

    Túlio Sigred Seixas - Novo Hamburgo, RS.

  19. ... on 13 de janeiro de 2010 às 09:08  
  20. Unknown disse...

    Nossa, Marta! Impossível resistir à tua aprazível companhia, mesmo que através do "Canteiro Mágico" aqui do teu blog, mesmo tendo chegado realmente cansada do trabalho, mesmo que sonhando o que tenhas vivido...tanto e tão intensamente e, generosamente, descortinado prá nós, teus ávidos convidados para esses fartos e requintados banquetes! Muito obrigada, fada das letras, maga da imaginacão, feiticeira do tempo! Beijão, querida maravilhosa, amiga! ^~^

  21. ... on 18 de dezembro de 2010 às 05:13  
  22. Anônimo disse...

    Aiiiii Annaaaaa!
    Estou morrendo de saudades do face, mas meu comp. está com um problema de conecção Enfim final de ano é corrido mesmo. Amiga não podes imaginar o que é abrir o blog e encontrar estes teus estimulantes e lindos comentários. Vamos lá amiga que este ano novo tenhamos sempre esta garra de vencer mais um pouco. Sucesso!!!!

  23. ... on 18 de dezembro de 2010 às 17:21  
  24. Marta Schönfeld disse...

    Carla Regina Volkart Marta is fruto suigêneris de uma época absoluta e completamente confusa. Entre idealistas, pelegos e oportunistas a Lei de Gérson foi a que mais valeu, e quem tinha diretrizes pacifistas sifu.
    há 19 horas · Curtir (desfazer) · 2

    Carla Regina Volkart Recomendo o Blog da Marta, Olga e O Espião que Sabia Demais. É doidera a facilidade de troca de idealismo político na época. Parabéns aos sobreviventes, mesmo que sequelados. Tinha que ter estrutura emocional prá conviver com todas aquelas reviravoltas. Estômago também. E foi essa a história que gerou a minha geração. Bom ler prá não se iludir com bandeiras nunca mais. (...como se isso fosse possível...)
    há 19 horas · Curtir (desfazer) · 2
    Marta Schonfeld Obrigada Carla Volkart! Bom que entendes meu recado! Bjs

  25. ... on 9 de junho de 2012 às 16:41