Aos poucos, as lembranças da minha vida até ali onde eu chegara, começavam a aflorar.

Burguesinha, burguesinha, burguesinhaaaa...


Já fazia um ano que eu estava em Paris e no entanto, cada dia era como se fosse o primeiro: estava sempre chegando na cidade que me fazia conhecer um novo século, com novas histórias.



Quanta coisa eu havia deixado para trás!

Agora, eu morava na Île Saint Louis, do século XIV. Ilha que é a extensão do Palácio de Louis XV e Maria Antonieta. Ali, ficava a moradia e as cocheiras do palácio.

Como eu era feliz nesse cenário, apesar dos cinco lances de escada para chegar a minha mansarda. Todos os meus anos de Aliança Francesa estavam ali.

“La bohème, la bohème, ça voulez dire, on être hereux” (feliz).




Estava vivendo, meu sonho se realizando, sem ter a consciência de que era "meu sonho". Lá, estava eu e meu amor por Rony, que começava a florescer.

A minha volta da Itália e a entrada naquela Ilha tão majestosa, me trouxeram também, mais esta aventura de amor.

Sabe quando a gente está apaixonada? Eu passava o dia com cosquinhas e arrepios no coração. Lavava o cabelo com água gelada no final, para ficar mais brilhante.

Meu coração saltava com as imprecisões da paixão: será que ele viria?

Rony era um "gentleman", culto, vivendo a história presente. Um aventureiro como eu.

Aquela fofoca em alto mar martelava na minha cabeça... Quando eu poderia imaginar tal coincidência?

Comecei a me questionar se o mundo era tão pequeno assim. E seguido também, me transportava para aquele paraíso.

Não, não podia pensar isso. Afinal, se o mundo fosse tão pequeno eu não teria mais chance de viver minhas aventuras.

Preferia pensar que foi uma grande coincidência. Ainda não tive tempo de falar o acontecido para a Sossô.

Os primeiros dias na Ilha e os últimos também, subia e descia aqueles lances de escada enlouquecida para conhecer tudo.

Não tínhamos chuveiro no edifício e precisávamos ir ao lado, no banheiro público, onde pagávamos poucos francos para tomar um maravilhoso banho. Só que três vezes na semana, era caro!

Logo nós, brasileiros, que gostamos de tomar 20 banhos por dia!

A nossa geladeira era feita de sacos de plástico, que pendurávamos ao lado de fora da janela, que tinha uma vista deslumbrante. Não tinha o mínimo barulho e era a melhor de todas.

Ao fundo, víamos a Igreja de Montmartre. Como já era outono, as avenidas em frente ao Cais D´Anjou, com as folhas de plátano caídas, davam ao chão uma feérica imagem delas cobrindo as ruas, num tom laranja avermelhado, iluminadas pelas luzes de Paris.

Rony, aquele anjo branco de quase um metro e noventa, começou a frequentar a nossa mansarda. Cada dia que chegava, tínhamos uma aventura para fazer, ele que bolava...

Várias vezes, saíamos a caminhar por Saint Michel, Saint Germain ou na própria Ilha para pegarmos livros, que as pessoas deixavam na rua como lixo.

O que achava mais engraçado era que, às vezes, tinha uma tv ou outro aparelho doméstico e a antiga dona escrevia: "aqui precisa de uma válvula" ou de qualquer coisa. Era muito interessante aquilo. Para o total "non sense" que nós, brasileiros, infelizmente temos até hoje com o lixo.

A minha vida e meus conceitos começaram a mudar.

Junto com a leitura, tínhamos encontros com os revolucionários que faziam parte da cultura do Rony. Ele era um estudante da Universidade de Vincènne, o centro de guerrilheiros vindos de todas as partes do mundo.

Tanto espanhóis, como chilenos e brasileiros exilados estavam lá. Os melhores professores que nos abandonaram na América do Sul, novamente, faziam brilhar a sua sabedoria.

Lá, quase não tinha aula. Eram feitas mais reuniões no parque, ao ar livre, do que dentro da Universidade.

Tive meu primeiro conhecimento sobre Josué de Castro, o sociólogo que escreveu a Geografia da Fome. Ele era um dos professores da Universidade.

Como eu não sabia nada!

Ali, começava a viver um outro capítulo da minha vida.

Pela manhã, descia para tomar café em qualquer bistrô onde, quase sempre, encontrava algum artista que morava ali perto como Michèle Morgan, Charles Aznavour e até Charles Brownson. Aiiii... Quai d’Anjou.

A Ilha era o lugar onde tinham as melhores "boulangeries", o melhor sorvete da cidade e o restaurante Tour D'Argent. Por isso, tantas personagens.

Como podia, aquelas pessoas morarem, fazerem suas casas milionárias dentro das cocheiras, como Cacharrel e outros?

Nesse mesmo tempo eu já havia adquirido um grande amigo francês: Jean Cornier, que trabalhava como jornalista do Le Parisién Liberé. Hoje, deve ser o dono, não sei...

Ele tinha uma entrada muito boa em outra esfera social. Se relacionava com grandes costureiros, grandes "marchands" e começou a me convidar para jantar na casa deles. Seu forte é que, era um profundo conhecedor do momento, da história contemporânea.

Lá, tinha eu, mais um amigo tipo o Zeca. Jean era mais cultural. Aliás, não tem cultural ou não cultural: tudo é cultura! Com tudo se aprende. Ninguém pode dizer que um é melhor do que o outro, ou mais inteligente do que o outro, ou mais rico do que o outro.

Com os pobres de Paris, aprendi uma lição...

Com o tempo, fui ficando amiga de todos os pintores que trabalhavam em seus quadros sobre as pontes.


Acima, o Sena, que atravessa os séculos, inexorável, independente das histórias de vidas que por alí passaram.

Ao longo de suas margens, estendiam-se quiosques que vendiam as telas.

Eu sentava em cima das muretas, com as pernas balançando e conversávamos sobre a vida, muitos eram sobreviventes de guerra.

Vários tinham feito parte da Resistência na II Guerra Mundial.

Comecei a entender melhor meu pai, que foi banido da Alemanha, por sua raça judia.

Lentamente, juntavam-se, quase sem que eu percebesse, os pedaços da minha existência, começava a viver minhas raízes e a minha busca como um todo.

As conversas com meus amigos pintores, eram maravilhosas! Revivíamos os melhores momentos de nossas vidas, contávamos de que cidade vínhamos e quais eram as nossas buscas.

Ali, comecei a reencontrar – carregada de saudade – os amigos que havia deixado no Brasil.



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11 comentários:

    Anônimo disse...

    Memeia De Carvalho Contursi essa historia vale muito ler!!!

  1. ... on 14 de março de 2010 às 11:49  
  2. Anônimo disse...

    Suzana Eichler comentou sua mensagem:

    "saudades de vc e da Neuzinha bjssssssssssssssss quero ler esse livro"

  3. ... on 14 de março de 2010 às 17:06  
  4. Paulo Bentancur disse...

    Marta!, de volta, guria... Saudades dos teus textos E de volta com as tuas voltas e reviravoltas próprias de um espírito inquieto e capaz de renovar-se sempre. Ao nos narrar tua trajetória até aqui, tu nos dá um banho de renovação também. Obrigado e parabéns! Senti a falta dessas histórias incríveis durante metade do verão. O teu calor não pode ser substituído pelo calor vazio do clima, despido das tuas andanças e descobertas tão humanas!

    Beijos.

  5. ... on 15 de março de 2010 às 14:58  
  6. Anônimo disse...

    Oba, afinal temos fascinantes terras para onde voltar a viajar. E com uma guia como poucas já vi nesta vida!

    Abraços.

    Sandra La Salle Marcondes - Vitória, ES

  7. ... on 15 de março de 2010 às 15:01  
  8. Anônimo disse...

    Março avança e o outono se aproxima. O frio vem chegando e nós nos aconchegamos nesteas postagens capazes de nos abrigar do tédio. Grande Marta! Conta mais, sempre...

    Beijo.

    Júlio César Rodrigues Coutinho (Campo Grande - MS)

  9. ... on 15 de março de 2010 às 15:06  
  10. Anônimo disse...

    "Li e de novo, adorei! quando sai o livro Martha? Quero vê-lo pronto o quanto antes!
    beijos alegres, minha querida, e continue nos deliciando com estes textos históricos e cheios de emoção!"

    Nara Lisboa

  11. ... on 15 de março de 2010 às 15:08  
  12. Anônimo disse...

    Obrigada amigos por estarem voltando!
    Por um momento pensei que tivessem ido embora. Estou feliz também por voltar, e contar mais algumas de minhas peripécias.
    marta

  13. ... on 15 de março de 2010 às 17:15  
  14. Anônimo disse...

    Amiga Marta,

    permita-me chamá-la de "amiga", porque só uma amiga dividiria conosco a riqueza/grandeza de suas experiências tão extraordinárias e, ainda por cima, teria a humildade de comparecer neste espaço dos comentários para compartilhar conosco essa convivência fascinante. Abraço afetuoso da

    Luiza Vasconcellos - Fortaleza - CE.

  15. ... on 15 de março de 2010 às 19:40  
  16. Marta Schönfeld disse...

    cada vez mais interessantes as postagens!
    maria aurélia di parentis (são paulo)

  17. ... on 17 de março de 2010 às 11:16  
  18. Marta Schönfeld disse...

    Guita Braude disse...Guita Braude Martinha querida, vou ser um pouco rustica, li a tua vivencia em Paris, foi clara e vibrante cheguei a me arrepiar!Amei, adoro ler ou ouvir historias de vida, e o que mais gosto.Depois de ler tu fechas os teus olhos e te transportas automaticamente junto a historia e parece ate a tua própria historia, tidos sonhamos assim, agradecida por esse momento. Bjs e estarei aguardando outras tantas!

  19. ... on 5 de fevereiro de 2013 às 20:57  
  20. alcides sanvicente disse...

    marta, muito legal a historia, gostei mesmo, viajei na historia. beijao.

  21. ... on 6 de fevereiro de 2013 às 13:09